2013/04/09

O chabu nuclear da Superinteressante

A Superinteressante deste mês traz uma matéria intitulada Como Fazer Uma Bomba Atômica. Escrita por João Vito Cinquepalmi, ela pretende ser uma discussão dos meios pelos quais terroristas poderiam tentar construir uma arma nuclear, as dificuldades envolvidas, suas chances de superá-las, e que medidas estariam sendo tomadas para impedi-los. Infelizmente, nenhum desses tópicos recebe mais do que um tratamento superficial, e nenhuma conclusão concreta é alcançada – a matéria acaba não indo além de informações básicas sobre fabricação de bombas nucleares, anedotas e afirmações vagamente alarmistas como "[construir uma bomba nuclear] não é tão fácil como dizem. Mas também não é tão difícil assim."

Quandro criança, fui um leitor assíduo da Superinteressante. Por isso, é triste para mim reconhecer o tratamento abismal que a revista outrora tão respeitada por mim reservou para um tema tão importante para o mundo de hoje – a tecnologia nuclear e seu impacto na segurança internacional.

Ao contrário do que Cinquepalmi diz (sem entretanto oferecer argumentos que sustentem sua posição), construir uma bomba nuclear é "tão difícil assim", sim.

Um "Austin Powers" Nuclear

Em seu artigo The Atomic Terrorist, o cientista político John Mueller faz uma análise detalhada das dificuldades à espera de um grupo clandestino que tentasse construir uma bomba nuclear. É uma ótima leitura que recomendo a todos, mas em resumo seus argumentos são os seguintes:
  1. Obter o material radioativo para construir uma bomba não é nada trivial, por inúmeros motivos – sua raridade, as medidas de segurança que o circundam, a facilidade com que pode ser rastreado e a necessidade de contar com colaboradores que precisariam ser corrompidos com altas cifras (e que poderiam então tentar chantagear seus "clientes", ou simplesmente embolsar o suborno e ir correndo denunciá-los às autoridades) são apenas alguns;
  2. Ao contrário do que muitas vezes se ouve, os designs mais antigos de bombas nucleares só são "simples" em comparação com as armas mais recentes. Um diagrama de uma bomba de fissão balística pode passar uma ideia geral do seu funcionamento, mas isso nem de longe é informação suficiente para fazer uma. Planos de manufatura detalhados e precisos seriam necessários, além de um entendimento intuitivo das tolerâncias envolvidas na sua construção – o tipo de conhecimento que requer experiência prática;
  3. Por isso, também não basta ter os planos: é preciso reunir uma equipe multidisciplinar, incluindo especialistas em metalurgia, mecânica, eletrônica e obviamente engenharia nuclear, entre outras disciplinas. Esses profissionais – todos com níveis de experiência e conhecimentos nada comuns – precisariam ser motivados a trabalhar juntos, em período integral, provavelmente durante anos, e abrindo mão de qualquer perspectiva de uma vida "normal" nesse período, e talvez para sempre, se o projeto for bem-sucedido;
  4. Também não é possível trabalhar em uma bomba nuclear na garagem de casa. Máquinas industriais, instrumentos de precisão, câmaras de armazenamento, equipamentos de proteção pessoal e outros implementos teriam que ser reunidos, provavelmente em uma ampla oficina. Tudo isso custa dinheiro, e também seria bastante difícil de organizar sem atrair atenção indesejada – por exemplo, dos governos nacionais que a essa altura já estariam cientes do roubo do material radioativo e empenhados na sua localização;
  5. Qualquer inadequação nos itens acima – qualidade ou quantidade insuficiente do material radioativo, planos de construção incompletos, deficiências de qualificação na equipe de montagem, equipamentos aquém dos requerido – teria efeitos dramáticos na viabilidade do projeto. A equipe poderia exaurir seu tempo e recursos tentando inutilmente resolver problemas técnicos muito além de suas possibilidades. Também é preciso lembrar que um poderoso explosivo convencional é parte imprescindível de uma bomba nuclear, e tais mecanismos não são conhecidos por sua estabilidade ou tolerância a erros de manuseio – bastaria um descuido para o projeto terminar de forma prematura e espetacular;
  6. Caso, por uma piada demente do Destino, esses obstáculos fossem de alguma forma superados, a bomba acabada precisaria ser levada até seu alvo. Ao contrário do que comentaristas de política internacional e roteiristas de filmes do James Bond acreditam, uma bomba nuclear não cabe em nenhuma maleta disponível no mercado; ao contrário, elas são trambolhos grandes e pesados, difíceis de transportar, mesmo desconsiderando a ansiedade que devem causar em seus portadores. Uma bomba de "segunda categoria", manufaturada em condições abaixo do ideal (o que necessariamente seria o caso em uma operação clandestina), seria muito pior – maior, mais pesada, mais difícil de ocultar e certamente menos resistente a danos no transporte;
  7. E se a bomba chegasse ao seu destino, não haveria nenhuma garantia de que ela funcionaria – obviamente um modelo de testes que validasse o processo de fabricação estaria além das possibilidades do grupo. Tampouco haveria qualquer garantia de ausência de problemas durante o transporte, uma operação que também dificilmente ocorreria em condições ideais.
Mueller conclui seu artigo com uma lista de 20 etapas que precisariam ser cumpridas, caso um grupo terrorista desejasse por meios próprios construir e fazer uso de uma arma nuclear. Ele observa que, assim como Austin Powers descer de pára-quedas sobre um carro em movimento, cumprir todos os 20 passos não seria fisicamente impossível – mas envolveria tantos fatores alheios ao controle de seus protagonistas, que sua chance de execução no mundo real seria praticamente nula. Afinal, mesmo atribuindo uma probabilidade de sucesso de 50% a cada uma dessas  ações – uma estimativa bastante otimista, considerando que mesmo missões muito mais simples são frequentemente desbaratadas pelas autoridades – a chance de ser bem-sucedido em todas elas em sequência seria menor do que 1 / 1.000.000 (uma em um milhão).

O Caso da Aum Shinrikyo

Um dos melhores estudos de caso sobre a viabilidade do desenvolvimento clandestino de armas nucleares é o da Aum Shinrikyo, uma seita religiosa apocalíptica Japonesa. Em 1993, quando iniciou seu programa nuclear clandestino, a organização contava com membros de alto nível educacional (chegando a ser conhecida como "religião das elites"), amplos recursos financeiros, uma base remota cuja privacidade poderia ser razoavelmente garantida, e até mesmo uma mina de urânio.

Além disso, diferente da Al-Qaeda e organizações semelhantes hoje em dia, a Aum Shinrikyo ainda não era àquela época um grupo ilegal ou ostensivamente perseguido pela autoridades internacionais. Portanto, podia prosseguir à luz do dia e em relativa tranquilidade com suas operações "normais" (logística, finanças, etc), enquanto tinha todo o tempo do mundo para dedicar-se secretamente a seus objetivos mais sombrios.

Entretanto, a despeito de todos esses fatores favoráveis, a Aum Shirinkyo fracassou redondamente em suas ambições nucleares. A organização então voltou-se primeiro para armas biológicas, e depois armas químicas; finalmente, em 1995 ela protagonizou o ataque com gás Sarin ao metrô de Tóquio onde morreram cerca de 15 pessoas.

Se uma organização com dinheiro, instalações dedicadas, membros de alto nível de escolaridade e livre do assédio constante dos maiores exércitos da Terra não conseguiu desenvolver armas nucleares por conta própria, que chance teriam organizações de recursos limitados, sediadas em países pobres, com infra-estrutura comprometida, pessoal pouco instruído e sob constante perseguição militar?

A Lenda da "Bomba Suja"

Um roteiro alternativo, que busca contornar as dificuldades de acesso a material altamente radioativo nas quantidades necessárias para construir uma bomba nuclear, é o da "bomba suja". Uma "bomba suja" seria um dispositivo que dispersaria material radioativo sobre uma área, expondo seus habitantes a contaminação radioativa. Isso poderia ser feito de várias formas, por exemplo soltando um pó radioativo que fosse levado pelos ventos – mas a maneira mais espetacular (e por isso preferida pelos "analistas") seria através de um explosivo que fosse acoplado ou envolvido por uma quantidade de material radioativo.

Scott Stewart analisa os problemas com esse design em um artigo no site de notícias STRATFOR:

A menos que grandes quantidades de material altamente radioativo sejam usadas, os efeitos da exposição [a esse material] seriam limitados. É comum sermos expostos a níveis elevados de radiação durante atividades tais como viagens de avião e montanhismo. Para causar efeitos adversos em um período curto, tal exposição precisa ocorrer a uma taxa muito elevada, ou ser sustentada por longos períodos para taxas de radioatividade mais baixas. Isso não significa que a radioatividade não é perigosa, mas a ideia de que a menor exposição cause danos mensuráveis não é correta.

Por sua própria natureza, o conceito de uma bomba suja é contraditório. Maximizar os efeitos danosos da radioatividade requer maximizar a exposição das vítimas à maior concentração possível de radioisótopos. Porém, ao dispersar o material radioativo, por definição e design a bomba suja dilui a concentração da fonte de radioatividade, dispersando menores quantidades de radiação sobre uma área maior. Além disso, o uso de uma explosão para dispersar o material alertaria as pretensas vítimas, que então abandonariam a área afetada, procurariam unidades de descontaminação etc. Esses fatores tornam muito difícil para um atacante administrar uma dose letal de radiação através de uma bomba suja.

Ou seja: a única forma de construir uma "bomba suja" cujos efeitos radiológicos fossem efetivos, seria usando uma grande quantidade de material altamente radioativo – e aí voltamos ao problema original, do acesso desanimadoramente difícil (para pretensos terroristas) a esse tipo de material 

If It Bleeds, It Leads

Mas se tudo isso é verdade, por que tanto se fala sobre os riscos de armas nucleares caírem em mãos de terroristas? Mueller comenta, a propósito de alguns comentários enganosos sobre o livro The Atomic Bazaar, que "escritores de orelhas de livros concluíram que histeria vende mais do que ponderação". É perfeitamente possível estender esse comentário à comunidade internacional de "inteligência", cujos orçamentos são eternamente dependentes da ameaça iminente representada por nações hostis ou grupos ilegais. Quão reais são essas ameaças é irrelevante, contanto que elas intimidem governos e corporações a manter e expandir seus investimentos em "segurança".

E infelizmente, algo muito parecido acontece na imprensa. Há um ditado em Inglês que diz, "if it bleeds, it leads" ("se isto sangra, isto lidera", em uma tradução ao pé-da-letra) – isto é, as notícias mais medonhas (que "sangram" mais) são as que fazem mais sucesso ("lideram" a audiência). Jornais, revistas e outras publicações – mesmo as "sérias" e "científicas" – não estão necessariamente interessadas na verdade, mas sim em atrair leitores. E se regurgitar as campanhas de paranoia da comunidade internacional de "inteligência" cumpre esse propósito... Não é como se esses veículos estivessem fazendo nada ilegal, não é mesmo? Eles apenas estão seguindo a história mais interessante – ainda que seja a menos provável.

Afinal, todos podemos concordar que Por Que É Praticamente Impossível Construir Uma Bomba Atômica Sem O Total Apoio De Um Estado Nacional seria uma chamada muito menos... Bem, chamativa do que Como Fazer Uma Bomba Atômica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário